As lições de São Sebastião para a Igreja peregrina e perseguida do século 21

20 de janeiro de 2021

É preciso retomar a memória de São Sebastião em sua fidelidade ao Cristo nestes novos tempos de idolatria. A apresentação comumente feita do santo como algo suave e cheio de maneirismos é uma ofensa ao seu testemunho. Querem matá-lo novamente por apropriação simbólica.

Por  Fernando Altemeyer Junior *

Sebastião é santo de conflitos e não figura domesticada e silente. Sebastião grita por justiça e afronta quem mata os pobres e persegue os presos. Sua memória e sua história não são cantiga de ninar nem um conto da carochinha. Sebastião é um prosélito cristão que assumiu de forma audaz o ser cristão em ambiente persecutório. Exemplo de fidelidade e de cuidado aos perseguidos.

Este santo me faz pensar em duas pessoas santas que conheci nos anos 1980 em São Paulo. O padre oblato (Francis) Chico Reardon, OMI, nascido nos Estados Unidos, e que passou a vida entre os presos da penitenciária do Carandiru. E a religiosa consagrada Isabel da Silva, ou irmã dos Anjos, chamada de Madre Assunção, das irmãs das religiosas do Bom Pastor, diretora da Penitenciária Feminina e respeitabilíssima por todas as presas e presas do Complexo de prisões paulistas. Foi a primeira mulher a entrar no Pavilhão Nove depois do massacre e assassinato de 111 presos por ordem do então governador Fleury. Saiu com uma sacola de pequenos papeis com bilhetes dos presos para suas famílias dizendo que estavam vivos e que teria sido metralhado pela polícia genocida. Mulher de coragem e amor infinitos.

Estes dois foram para mim como dois novos “Sebastiões” dos tempos atuais. Ambos vivem na eternidade e na memória dos santos da Igreja paulopolitana. Em memória deles e do santo mártir Sebastião precisamos revisar a história para que ao falar deste santo soldado não o apresentemos como mais uma grotesca novela da Rede Globo de Televisão ou mesmo como ópio religioso.

Sebastiano (Sebastianus ou Sebastiano ou Bastiano) nascera em Milão, de pai francês de Narbonne, região da Occitânia, sudoeste da França (distante 731 km de Milão) e mãe de origem milanesa. Foi educado na fé cristã e se tornou um seguidor fiel de Jesus, o Cristo. Partiu para Roma (574 km de Milão), possivelmente em 270 d.C. como relata Santo Ambrósio (340+397), bispo de Milão, em seu “Comentário sobre o Salmo 118”.

Teria iniciado a carreira militar por volta de 283 e é elevado a tribuno da Primeira Coortee da Guarda Imperial, estimado por sua lealdade e inteligência pelos Imperadores Maximiano e Diocleciano, que não sabiam que ele fosse cristão. Graças à sua função, podia ajudar com discrição os cristãos presos, cuidar do sepultamento dos mártires e converter soldados e nobres da corte, onde fora apresentado por Cástulo, servo da família imperial, que mais tarde também morre mártir. Teria sido Sebastião a sustentar os confessores da fé Marcos e Marcelino na prisão.

Segundo a tradição memorial da Igreja em Roma, havia terminado de enterrar os santos mártires Cláudio, Castório, Sinforiano, Nicostrato, chamados de Quattro Coronati, na Via Labicana, quando é preso e levado por Maximiano a Diocleciano, que furioso com o boato de que, no palácio imperial, os cristãos até se aninhavam entre os pretorianos disse a Sebastião: “Sempre te mantive entre os anciãos do meu palácio e trabalhas nas sombras contra mim, insultando aos deuses”. Roma era lugar de violenta perseguição aos cristãos desde Cesar Nero e Sebastião sofrerá o que podemos chamar de “duplo martírio”.

Sebastião foi condenado a ser perfurado por flechas. Foi amarrado a um poste na área do Monte Palatino, chamada ‘Campus’. Considerado morto pelos soldados que o perfuraram, foi ali deixado para ser comido por animais selvagens, mas a nobre Irene, viúva de Castulo, foi buscar o seu corpo para lhe dar o enterro, e percebe que o tribuno não estava morto levando-o para a sua casa no Palatino, ungindo suas feridas. Milagrosamente Sebastião se restabelece e apesar do conselho dos amigos de que saísse de Roma, decide proclamar sua fé em Cristo Senhor diante de Diocleciano e Maximiano.

Assim enquanto os imperadores iam para o serviço cultual no templo erguido por Heliogábalus, em homenagem ao Sol Invicto (deus pagão), Sebastião se apresenta redivivo e professa a fé com coragem. Ao ouvir as acusações públicas de Sebastião denunciando a perseguição e morte cruel dos cristãos, Diocleciano ordena que ele fosse açoitado e espancado até a morte. Alguns escrevem ter sido em 288 outros em 304 d.C. no Hipódromo do Palatino a data e local da efetiva execução, e o seu corpo foi jogado na Cloaca Máxima (rede de esgotos de Roma), para que os cristãos não pudessem recuperá-lo. O mártir apareceu em sonhos para a cristã Lucina, indicando o lugar onde o corpo havia sido jogado pelos soldados imperiais e pedindo que o enterrassem no cemitério “ad Catacumbas” na Via Appia.

Desde o século terceiro se foi escavando a catacumba donde se sepultaram os mártires Sebastião e Eutiques. Até o século VI, os peregrinos que até lá iam atraídos pela ‘memória’ de São Pedro e São Paulo, na Basílica Constantiniana, erguida em memória dos dois apóstolos, visitavam o túmulo do mártir Sebastião, figura popular, sobretudo depois do ano 680, quando ocorreu o fim de uma grave peste em Roma, graças aos pedidos feitos em sua intercessão. O mártir São Sebastião é eleito protetor contra epidemias e a igreja passa a chamar-se “Basílica Sancti Sebastiani”, das mais antigas de Roma. Por sua obra de assistência aos cristãos, foi proclamado pelo Papa S. Caio “defensor da Igreja”. É venerado em 20 de janeiro e é considerado o terceiro padroeiro de Roma, depois de Pedro e Paulo. Sua devoção se expande na Idade Média por todos os países cristãos ocidentais e orientais.

As fontes históricas são poucas: o ‘Depositio martyrum’ datado de 354, que o recorda em 20 de janeiro e informações embelezadas pela cultura popular na ‘Passio’ provavelmente escrita no século V pelo monge Arnóbio, o Jovem.

A mais antiga representação artística do santo remonta ao século V na cripta de Santa Cecília, na catacumba de São Calisto em Roma. Há pinturas em que Sebastião abriga o povo da cidade sob seu manto, sustentado por anjos contra as flechas da peste. Há uma identificação efeminada de Sebastião como uma virgem da Misericórdia. Durante os séculos haverá oscilações entre representações de um homem maduro e cabelos brancos ou jovem soldado imberbe, particularmente nos séculos XIII e XIV. Se tornará tema recorrente no renascimento italiano em obras de Botticelli e Mantegna.

Há uma variante de Piero della Francesca de um Sebastião nu com mãos atadas, intitulado Políptico da Misericordia (1445-1448), na pinacoteca de Borgo San Sepolcro. A escola artística espanhola apresenta Sebastião sempre vestido como um caçador com arco e flechas.

A memória litúrgica na igreja latina é feita em vinte de janeiro. Na Igreja oriental é celebrado em 18 de dezembro. Além de São Sebastião do Rio Janeiro, existem no Brasil outras dezesseis cidades com seu nome e ainda 190 cidades o têm como padroeiro e protetor. Ele é protetor diante das pestes e cuidador da epilepsia.

São Sebastião (AL)

São Sebastião (SP)

São Sebastião da Amoreira (PR)

São Sebastião da Bela Vista (MG)

São Sebastião da Boa Vista (PA)

São Sebastião da Grama (SP)

São Sebastião da Vargem Alegre (MG)

São Sebastião de Lagoa de Roça (PB)

São Sebastião do Alto (RJ)

São Sebastião do Anta (MG)

São Sebastião do Caí (RS)

São Sebastião do Maranhão (MG)

São Sebastião do Oeste (MG)

São Sebastião do Paraíso (MG)

São Sebastião do Passé (BA)

São Sebastião do Rio Preto (MG)

São Sebastião do Rio Verde (MG)

São Sebastião do Tocantins (TO)

São Sebastião do Uatumã (AM)

São Sebastião do Umbuzeiro (PB)

Resgate da memória atualizada do mártir São Sebastião

Sebastião foi perseguido pelos imperadores por sua fé em Cristo Jesus, o Nazareno.

Sebastião protegeu os presos.

Sebastião visitava os presos.

Sebastião não se submeteu aos genocidas e os enfrentou frente a frente.

Sebastião não fugiu da luta nem se submeteu aos caprichos da classe dominante.

Sebastião é exemplo evangélico de coerência ao lado dos últimos e dos subalternos.

A veneração do santo exige de nós a mesma coragem para enfrentar hoje a idolatria do capital, a arrogância dos que matam os pobres e manter a fidelidade ao lado dos pobres.

Sebastião é mais que uma estátua presa a uma estaca com flechas pelo corpo. Ele é alguém de quem precisamos retomar o exemplo no enfrentamento das novas idolatrias contemporâneas que colocam o dinheiro acima da pessoa humana e o poder contra os pobres esmagados por botas militares de torturadores e genocidas.

São Sebastião foi assumido por inúmeros grupos LGBTQI+ como seu patrono e protetor diante da homofobia, da transfobia e frequentes perseguições de gênero que tem produzido mortes e sofrimentos atrozes às pessoas desprezadas e segregadas até mesmo por católicos que desprezam o mandato de Jesus.

Importante destacar que São Sebastião foi sincretizado como Oxóssi, orixá caçador na Umbanda e no Candomblé.

* Prof. Dr. Fernando Altemeyer Junior, chefe do departamento de Ciências Sociais da PUC-SP.

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