
O Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol (CIFCRSS) acolheu nos dias 14 a 16 de fevereiro, indígenas provenientes das quatro regiões que fazem parte da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS) no Estado de Roraima para fazer memória da caminhada e celebrar São José Allamano.
Por Victor Mbesi Wafula *
O Centro é uma escola localizada na comunidade indígena Barro, na região Surumu. Trata-se de um evento de grande importância não só para a Família missionária da Consolata, mas sobretudo, para os povos indígenas e para a Igreja.
Nos dias 14 e15 aconteceu a “Jornada com Allamano” durante a qual, os missionários e a Coordenação Geral dos Catequistas da TI RSS organizaram temas voltados à pessoa de São José Allamano, com o objetivo de nutrir a fé, revigorar a esperança para assumirmos com maior compromisso e zelo a missão que hoje o Senhor nos confia.

A jornada iniciou com a Santa Missa às 06h30 presidida pelo padre Luiz Carlos Emer da missão Maturuca, região das Serras. Inspirado na liturgia do dia, o padre apresentou Allamano como alguém que se preocupou com a fome do mundo, a fome pelo Evangelho. “Diante dessa fome, ele não se acomodou, não se deixou vencer pela fragilidade de sua saúde, e ainda que não podia sair da Itália, acreditou que podia colaborar em saciar a fome do mundo. A fundação dos dois Institutos Missionários aponta a um horizonte maior: a vocação, o que Deus quer de cada um. Os missionários e as missionárias enviados pelo mundo são portadores da Boa Nova, a mensagem da paz, da justiça e amor. O jovem Allamano acolheu o chamado de Deus com urgência e diante daquilo que parecia obstáculo, ele respondeu: ‘O Senhor me chama hoje, e não sei se me chamará amanhã’”, recordou o padre Luiz.
Através da doação e da entrega à missão, São José Allamano continua distribuindo pão e peixe aos famintos de hoje: homens e mulheres que vivem mergulhados dentro das inúmeras estruturas escravagistas existentes de opressão, injustiça, escravidão, preconceito racial, marginalização, etc.
Quem é José Allamano?

A vida de São José Allamano foi apresentada pelo padre Julius Masere, missionário queniano atuando na região Raposa, com o seminarista congolês, Severín estudante de teologia em São Paulo. Em Castelnuovo d’Asti, terra natal de São José Cafasso e de São João Bosco, nasceu José Allamano aos 21 de janeiro de 1851, o quarto de cinco filhos.
Órfão de pai antes de completar os três anos, Allamano teve uma influência muito grande por parte da mãe, dona Maria Ana Cafasso, irmã de São José Cafasso. Ainda muito jovem, Allamano abriu-se à voz do Senhor e em 1866 entrou no seminário onde toda a sua vida foi marcada pela fragilidade física, mas Deus manifestou o seu poder, tornando-o educador de seminaristas como formador, Reitor do Santuário da Consolata, Pai de missionários e missionárias ao fundar o Instituto Missões Consolata e o Instituto das Missionárias da Consolata em 1901 e 1910 respectivamente
O que podemos dizer do Allamano? É como um grão de mostarda. Tão pequeno, quase que insignificante pela sua invisibilidade. “Fazer o bem, bem-feito e sem barulho” era um dos seus lemas. O bem consequentemente comunica por si só como dizia Tomás de Aquino, “Bonum diffusivum sui.” A semente lançada na terra através de doação de si, pela confiança inabalável em Deus e na Sua Providência, pelos sacrifícios oferecidos por amor, surge uma espiritualidade ímpar. É esse caminho que posteriormente vai nortear a vida dos missionários e missionárias da Consolata. A semente germinou, e hoje, a arvore dá abrigo a muitos “pássaros”, levando a Consolação aos peregrinos deste mundo em 35 países de quatro continentes.
São José Allamano e Missão
Padre James Murimi, queniano, atuando na Missão Maturuca falou sobre “José Allamano e Missão” convidando a assembleia a contemplar a imagem do Santo, que segundo ele, “mostrava um olhar sereno, porém, penetrante”.

Pela escuta atenta à voz de Deus através dos que viviam a missão além-fronteiras, pela sensibilidade às necessidades da Igreja missionária, Allamano não teve dúvida de que pudesse colaborar na missão evangelizadora da Igreja. Padre James destacou a santidade de vida de Allamano que se apaixonou pela missão porque antes se deixou conquistar pelo amor de Cristo. Mais tarde diria aos missionários, “o fim último do Instituto é a santidade”.
Os povos indígenas
Para contextualizar a caminhada histórica do povo indígena acompanhado pelos missionários da Consolata, o tuxaua senhor Jacir José de Souza e a catequista Deolinda Melchior da Silva, ambos da Região das Serras, apresentaram o tema “Allamano entre os Povos Indígenas”. Essas duas lideranças são ícones na luta dos povos indígenas. O senhor Jacir é conhecido como articulador, negociador e a pessoa de maior influência entre a população indígena. Com o apoio dos Missionários da Consolata, o então tuxaua começou a luta em favor da demarcação da TI RSS. Inconformado com as contínuas violações da vida, da dignidade e dos costumes dos indígenas, Jacir percorreu o mundo levando a reivindicação dos povos indígenas contra a violência e a descriminação.

Nessas andanças, teve a graça de ser recebido em audiência por dois pontífices: São João Paulo II e Bento XVI. A luta que começou em 1977 se estendeu até 2005 quando finalmente o território demarcado foi homologado por decreto da Presidência da República. Hoje, com um coração profundamente agradecido, o tuxaua Jacir continua formando novas lideranças, transmitindo-lhes a história da luta e da conquista da terra marcada por muito sofrimento, mortes, torturas, além de ameaças aos missionários. “Os missionários foram os únicos parceiros fiéis que ficaram do nosso lado sobretudo em momentos decisivos da nossa história”, ressaltou o tuxaua Jacir.

Dona Deolinda é a primeira mulher indígena a ser instituída catequista no Brasil durante a 61ª Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que aconteceu de 10 a 19 de abril de 2024, em Aparecida (SP). Na sua locução, a catequista manifestou gratidão a Deus pela presença “desses homens que vieram de tão longe para trazer o Evangelho para nós”, pedindo a colaboração de todos para tornar o trabalho missionário mais eficaz.
Allamano e a Consolata
O padre colombiano, Luis Fernando Barros, atuando na região Baixo Cotingo refletiu sobre a história da Devoção de São José Allamano à Maria Consolata. “São José Allamano era um devoto da Santíssima Virgem Consolata ao ponto de referir-se a Ela como a Fundadora. ‘A devoção a Maria é uma necessidade. Se não tiverdes devoção para com Nossa Senhora, e não digo apenas devoção, mas uma terna devoção, não vos santificareis’, dizia Allamano”.

O miladre de Sorino Yanomami
Através de São José Allamano, Deus visitou os povos indígenas, de modo singular, àqueles que não O conhecem explicitamente. O tema “São José Allamano e o Milagre” foi apresentado pela professora Ingrid de Souza Menandro, catequista e coordenadora dos catequistas da TI RSS. De um modo sucinto, a professora apresentou como o indígena Sorino foi salvo após ser atacado e ferido por uma onça em 1996. No leito do hospital em Boa Vista, com poucas chances de vida, as Irmãs Missionárias da Consolata pediram a cura do Sorino com a novena do então Bem-aventurado José Allamano. Sorino se recuperou milagrosamente e segundo a equipe médica, a cura não tinha uma explicação científica, pois considerando a perda da substância cerebral, ele teria um déficit muito grande com danos motores, paralisia e problemas intelectuais. Quase 30 anos depois, Sorino tem uma vida normal e sem sequelas na sua comunidade em Catrimani, segue sua rotina de caça, pesca e trabalhos na agricultura.

Allamano e a Eucaristia
A jornada com Allamano encerrou-se com uma reflexão sobre “Allamano e a Eucaristia” conduzida pelo padre Victor Mbesi Wafula, queniano e atuando na região Surumu. Allamano soube contemplar a Eucaristia como presença real de Jesus, e dela emanam as forças necessárias para uma vida de graça em Cristo. A Santa Missa era centro da vida dele, e insistia em celebrar a Eucaristia com zelo. A reflexão incluiu um momento penitencial onde os fiéis presentes tiveram a possibilidade de confessar-se. A Eucaristia é a fonte e o ápice da vida e da missão da Igreja (LG 11), porque, como nos recorda Santo Irineu, “a Eucaristia é o resumo e a súmula da nossa fé”. Assim como era na vida de São José Allamano, que toda a nossa vida se oriente pela Eucaristia e que tende para a Eucaristia pois ela é o centro da vida da comunidade cristã.

Festa de São José Allamano
O dia 16 de fevereiro iniciou com uma procissão e o Terço Missionário da Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro – Barro, rumo ao Centro de Formação. Pade Luiz Carlos Emer que trabalha em Maturuca, apresentou um breve histórico da presença missionária e consoladora no Centro de Surumu, recordando as inúmeras vidas tocadas através da escola, do hospital e dos vários trabalhos pastorais realizados sempre em favor do povo. “Que a semente lançada nesse chão ecoe aos ouvidos de muitos a consolação trazida pelos missionários e missionárias da Consolata”.
Um pouco antes das 10h00, iniciou a procissão inicial da Celebração Eucarística em ação de graças pela canonização de São José Allamano, evento ocorrido no dia 20 de outubro de 2024 em Roma no Dia Mundial das Missões. A Missa foi presidida pelo Bispo diocesano, Dom Evaristo Spengler, OFM, concelebrada por Dom Zenildo Luiz Pereira da Silva da diocese de Borba, além da maioria dos padres da Consolata atuando no território. Estiveram também presentes dois seminaristas da Consolata, o Wilbroad de Uganda e o Séverin da Democrática República do Congo, e o seminarista Djavan André da Silva da comunidade Maturuca que será ordenado Diácono da Igreja de Roraima em abril.

A Missa aconteceu num lugar simbólico, um lugar de grande significado histórico para os povos indígenas. Dom Evaristo recordou que, neste lugar, no ano de 2005, por vingança dos fazendeiros pela homologação integral da TI Raposa Serra do Sol, foi queimada a Igreja, a casa das Irmãs, e o hospital também. “Celebramos, portanto, neste lugar de resistência dos povos indígenas na luta pela terra que vem da ancestralidade. Este local é também um ponto de forte aliança da Igreja com os povos indígenas em busca da demarcação, da homologação, enfim, em busca do direito integral a esta terra Raposa Serra do Sol”. Igualmente importante recordar o dia histórico da Aliança, o dia em que os povos indígenas através das suas lideranças, fizeram uma opção preferencial pela comunidade e assim dizendo não a bebida alcoólica. O dia 26 de abril de 1977 ficou registrado na memória histórica dos povos indígenas como o Dia da Decisão, “ou Vai ou Racha.”

Com o tom de voz expressivo, um olhar suave, mas firme, e totalmente voltado para os religiosos, o Bispo ponderou, “Deus amou vocês. Deus amou a cada um e agora Deus os envia em missão. Como Bispo desta diocese quero agradecer muito a presença dos missionários da Consolata. As missionárias não estão aqui, mas também, gratidão a elas pelo trabalho realizado e que realizam em nossa diocese.”
A terra de Makunaima tem histórias para contar. Aqui habitam místicos, por aqui perduram mistérios para desvendar. Como na famosa narrativa da sarça ardente (Êxodo 3:2), é preciso tirar as sandálias pois este chão é terra santa. O sopro do Evangelho perpassa pelas ondas da história do povo, marcada pela luta e resistência. Por isso o Bispo sabiamente proferiu, “O método de evangelização dos missionários e das missionárias é o método do encontro. Encontrar irmãos e irmãs. Este encontro envolve aprendizado da língua, o respeito pela cultura local. Que o Evangelho transforme a vida que está ameaçada, a vida que está lesada, a vida desvalorizada em vida mais digna, vida respeitada, vida valorizada. Desde cedo, os missionários da Consolata tiveram essa clareza e essa opção muito explícita dos povos indígenas”, frisou Dom Evaristo.

Segundo o Bispo, “o reconhecimento do milagre realizado por meio de São José Allamano na cura do indígena Sorino, é um forte sinal de que Deus está abençoando a missão dos missionários e missionárias da Consolata e confirmando que esse é o caminho a ser seguido”.
Homenagens pelos 10 anos de sacerdócio
Os padres James Njimia Murimi e Victor Mbesi Wafula, completaram no dia 14 de fevereiro, 10 anos de vida sacerdotal. Os dois fizeram uma retrospectiva e do fundo de seus corações brotavam sentimentos de gratidão a Deus pela vocação. Dom Evaristo acolheu os dois em seus braços e com palavras exortativas, manifestou sua gratidão pela vida doada e com um fraterno abraço fez votos de uma missão fecunda em favor dos povos indígenas.

O almoço da confraternização marcou o encerramento do evento, e como o Apóstolo dos gentios, também podemos dizer, “Por tudo, dai graças ao Senhor!” (1Ts 5,18).
* Padre Victor Mbesi Wafula, IMC, missionário na Região Surumu, TI RSS em Roraima.