Em visita à Europa, quilombolas exigem respeito aos seus direitos

Maria Aparecida R. de Sousa, Nathalia Purificação e José M. Silva, membros da CONAQ em visita a Roma. Foto: Jaime C. Patias

Lideranças afrodescendentes do Brasil estiveram na Europa para denunciar violações de direitos fundamentais, discriminação cultural e religiosa, e exigir reconhecimento de suas terras ancestrais. Em Roma, a delegação concedeu entrevista ao site Consolata News.

Por Jaime C. Patias *

No Brasil, existem aproximadamente 1,3 milhão de quilombolas distribuídos em 1.700 municípios. Entre 2019 e 2024, foram registrados 46 assassinatos de lideranças conforme revela o projeto “Resistência Quilombola”, desenvolvido pela Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) em colaboração com a Cooperação para o Desenvolvimento dos Países Emergentes (COSPE) e o apoio da União Europeia. O projeto já envolveu mais de 90 comunidades em conflito e com lideranças ameaçadas propondo medidas e protocolos de proteção.

Caravanas de diferentes estados participam de evento, organizado pela CONAQ, abril 2025. Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Violência contra a mulher

No mesmo período, foram documentados 58 casos de ameaças de morte, 33 dos quais, a lideranças femininas. “Não é somente o fato de ser mulher ou de ser liderança isoladamente. A violência é uma questão transversal que determina a nossa sobrevivência em todos os aspectos”, afirma Nathalia Purificação, coordenadora de comunicação da CONAQ que integrou a delegação na visita à Itália (Ferrara, Florença, Roma) e na Europa (Madri, Bruxelas e Genebra).

“Ser mulher hoje nessa sociedade já é um desafio muito grande. Não desmerecendo a luta das outras mulheres, mas ser mulher negra, quilombola, rural, liderança, cultuando religiões que não são bem-vistas em alguns espaços, determina o nosso tempo de validade aqui na terra”, destaca Nathalia recordando que, de 2008 a 2024, 22 mulheres quilombolas, a maioria lideranças, foram mortas e duas sofreram tentativas de homicídio.

Nathalia cita como exemplo, Maria Bernadete Pacífico que em agosto de 2023 foi brutalmente assassinada no Quilombo Pitanga dos Palmares, na Bahia com 25 tiros no rosto dentro de sua casa e na frente dos netos. Ela denunciou repetidamente atividades ilegais, como extração de madeira e garimpo não autorizado. Seu trágico fim segue o de seu filho, Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, assassinado em 2017 após denunciar traficantes e empresas envolvidas no desmatamento de suas terras. “Mãe Bernardete (como era conhecida) foi morta por ser uma mulher liderança, mas também por cultuar e acreditar em quem acreditava. É um desafio que caminha com a gente desde que o Brasil é Brasil, nós sempre fomos violentados, sempre tivemos a nossa fé questionada”, ressalta evidenciando a chaga da discriminação religiosa. Em muitos casos, os próprios agentes públicos, muitas vezes ligados a grandes proprietários de terras, criam um clima de terror generalizado nas comunidades.

Delegação quilombola do Brasil durante entrevista em Roma. Foto: Jaime C. Patias

Reconhecimento dos territórios

“É a partir da regulamentação do território que podemos implementar outras ações e garantir os direitos”, observa José Maximino Silva, coordenador nacional da CONAQ e do projeto Resistência Quilombola. “Olhando para o Congresso, a gente percebe o quanto ele é conservador assim como as estruturas de poder no Brasil. Os espaços de decisão, parecem que não foram feitos para nós. Precisamos furar essa bolha para tratar das nossas demandas e dar visibilidade à nossa luta”.

Nathalia Purificação reforça que “com a titulação do território”, que segundo ela, “é o primeiro passo e não o fim da linha para conseguir os nossos direitos, outras políticas chegam na comunidade. Podem criar mil leis, se você não dá aos quilombolas a posso da terra e a autonomia de plantar o que comem, de cuidar do que acreditam e impulsiona a sua vida, você tira tudo deles”, observa.

Movimentos unidos na luta

Maria Aparecida R. de Sousa

Ao comentar sobre a unidade das organizações na luta contra o racismo e a discriminação no Brasil, Maria Aparecida Ribeiro de Sousa, coordenadora nacional da CONAQ onde também é coordenadora do Coletivo de Mulheres, explica que “existem muitas pautas comuns aos quilombolas e outros movimentos por terra e direitos, como o indígena. Na Amazônia, por exemplo, existem quilombos reconhecidos pelo governo, símbolos de identidade e resistência compartilhados por povos africanos escravizados por colonos e populações indígenas locais. É claro que nossas reivindicações diferem daquelas dos movimentos que surgem e lutam nas áreas urbanas, no entanto, quando chega a hora de ir às ruas, encontramos um ponto em comum e marchamos juntos”, conclui.

Demonização e cancelamento da fé ancestral

Os valores religiosos e culturais ancestrais de uns tempos para cá começaram a serem demonizados, especialmente pelo neopentecostalismo que se espalhou nos territórios indígenas e quilombolas. Nathalia Purificação recorda que “o processo de colonização do Brasil foi violento não somente pelo sangue derramado, mas pelas histórias apagadas”, sublinha. “Quando o neopentecostalismo chega nas nossas comunidades, não é sobre a violência na sua forma nítida, mas na violência intrínseca e que mais dói dentro da gente. Milhares de comunidades quilombolas apagaram a sua única evidência de ancestralidade e culto aos orixás em nome de uma política que somente vê uma salvação”. O povo brasileiro é um povo de fé diversificada com evidências indígenas e africanas. “Quando chegam essas igrejas elas não só transformam uma crença, mas matam a cultura e a fé que restou, a única prova de que fomos trazidos da África”, denuncia.

José Maximino Silva

José Maximino enfatiza que o Brasil é um estado laico, “mas nós sabemos quais são as religiões predominantes. A religião sempre foi um tipo de poder utilizado como forma de dominação. Nós das religiões de matizes africanas, desde o início fomos oprimidos. O poder enquanto religião colonizou e isso ainda existe até hoje”.

As igrejas neopentecostais “não somente utilizam a religião para invadir os nossos territórios, mas também para negar a fé que temos. Isso é muito nocivo e são formas de deixar o sujeito submisso. Os neopentecostais procuram penetrar na mente da pessoa para que ela rejeite a sua condição. É uma lavagem cerebral, uma manipulação que chega de forma velada e maquiada”, diz José Maximino. O medo é tão grande que os mais velhos, que conservam as tradições das rezadeiras, benzedeiras e orixás, “passam a esconder isso e ter vergonha daquilo que eles manifestavam. “Com isso essa tradição não é mais repassada aos mais jovens”.

José M. Silva pontua que no governo anterior no Brasil “houve a proliferação de um tipo de fé. E essa fé foi violenta porque criou a disputa para ver qual era a fé certa e qual era errada, a que servia e a que não servia. A partir disso, nós vimos pessoas manifestarem as partes mais obscuras de si praticando violência em nome de uma fé tida como a correta. Isso é muito ruim porque cerceia e silencia uma diversidade belíssima nas religiões africanas”, avalia.

Resiliência, acolhimento e escuta

Olhando para o futuro os ativistas afrodescendentes em Roma destacam palavras chaves: resiliência, acolhimento e exercício de escuta. “Precisamos nos ouvir para nos compreendermos melhor e aprender ouvir os outros”, diz Maria Aparecida. “Acolhimento, escuta e diálogo seriam a tríade extremamente necessárias como energia impulsionadora e transformadora”, reforça José M. Silva.

Nêgo Bispo em visita ao Espaço do Conhecimento UFMG em 2023. Foto: Fernando Silva

Nathalia complementa citando Nêgo Bispo, liderança, filosofo e escritor da Comunidade Quilombola Saco-Curtume, no município de São João do Piauí (PI), falecido em 2023, que ensinava: “Nós somos começo, meio e começo”. Isso significa que, “a nossa ancestralidade não acaba, mas tem uma continuidade. E nós estamos aqui para fazer essa continuidade acontecer. Somos uma delegação jovem e temos essa gana de continuar e permanecer, até que os nossos direitos sejam reconhecidos e nossos territórios titulados. A luta não termina aqui. Nós somos começo, meio e começo. Não queremos vingança, queremos somente justiça”, afirma Nathalia com um olhar esperançoso.

* Jaime C. Patias, IMC, Secretariado Geral para a comunicação.

NB. Poesia de Nêgo Bispo, onde ele diz “demonstrar a grandeza de nossa trajetória”, foi musicada por Lazzo Matumbi, baiano, cantor, compositor e ativista dos direitos humanos, oriundo do bloco afro Ilê Aiyê.

Nós, caminhando pelos penhascos,

atingimos o equilíbrio das planícies.

Nós, nadando contra as marés, 

atingimos a força dos mares.

Nós, edificando nos lamaçais, 

atingimos a firmeza dos lajeiros.

Nós, habitando nos rincões, 

atingimos a proximidade da redondeza.

Nós somos o começo, o meio e o começo.

Existiremos sempre, 

sorrindo nas tristezas 

para festejar a vinda das alegrias.

Nossas trajetórias nos movem,

Nossa ancestralidade nos guia.

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