Treze comunidades cujos fiéis descendem de pessoas escravizadas na Bahia fazem história ao celebrar a primeira paróquia quilombola do país e, portanto, sua identidade e resistência como povo negro católico.
Por Karla Maria / Agência Signis
Francisca era franzina e costumava, lá pelos idos dos anos 1990, caminhar pela comunidade Candeal II no norte de Feira de Santana (BA) observando os desenhos e as letras marcadas pelo chão, já que esse chão de terra molhado era o quadro onde as crianças tomavam as primeiras lições. O caminho percorrido pela então pequena Francisca das Virgens Fonseca, 42 anos, a 108km de Salvador é proveniente da Fazenda Candeal II, uma comunidade tradicional quilombola, rural, que integra o distrito de Matinha, e que, em novembro de 2021, testemunhou a “criação” da Paróquia São Roque, a primeira paróquia quilombola do país.
E já neste parágrafo há muito que destacar. A Fazenda Candeal contava com 11 senzalas e 27 escravos, informação que consta na relação de bens descrita em inventário de 1854, em decorrência da morte do então proprietário da mesma José Vitorino de Oliveira. Já o termo quilombo faz referência à instituição sociopolítica militar existente na África Central, uma fonte de inspiração aos que no Brasil se opunham ao modelo escravista opressor.
“Os antigos moradores alegam que a Fazenda Candeal possuía alguns escravos (sic) e estes, quando se revoltavam contra seus senhores, escondiam-se em uma mata cerrada, pequena, a Matinha”, destaca Francisca em sua dissertação de mestrado intitulada Os desafios socioeducacionais e comunitários nos processos de reconhecimento e fortalecimento dos Territórios Tradicionais Quilombolas: o caso da Fazenda Candeal II. E é desta realidade, de escravização de pessoas, que brota historicamente a fé e a resistência do povo preto ali em Feira de Santana, onde está localizada a recém-paróquia.
“…ser um diácono, um católico não me dissocia da minha cultura, do ser negro, e essa capacidade da Igreja de estar com o povo dentro da sua cultura, sem separar a identidade do povo, é muito bonita. Aqui a Igreja reconhece essa necessidade de cuidar da identidade do povo” (diácono Ibrahim Muinde)
O Distrito de Matinha é reconhecido como Comunidade Tradicional Quilombola desde 2014, sendo a segunda comunidade do município que recebeu o certificado. A primeira delas foi Lagoa Grande, no distrito de Maria Quitéria. “No caso concreto do Distrito de Matinha, com comunidades quilombolas reconhecidas, ou com identidade de remanescentes de quilombos, além de ser comunidade rural, este cuidado pastoral adquire características próprias, tais como o acompanhamento das suas iniciativas existentes, a promoção da sua riqueza cultural e o apoio em suas lutas por dignidade, a inserção e a conquista dos seus direitos, sempre norteados à luz do Evangelho e pautados pelo Magistério da Igreja”, escreveu dom Zanoni Demettino Castro, arcebispo de Feira de Santana, por ocasião da criação da paróquia.
A Paróquia de São Roque – Matinha nasce do desmembramento da Paróquia de São José das Itapororocas – Maria Quitéria e abrange 13 comunidades. O nome “Matinha” e a devoção a São Roque remetem à história da comunidade. Contam os relatos da Associação Comunitária de Desenvolvimento do Candeal (ACDC) que Matinha, além de abrigar escravos fugitivos da Fazenda Candeal, é “também é um lugar de muita fé e devoção a São Roque”, conta Francisca de sua casa, em Feira de Santana.
Ela destaca que uma moradora fez uma promessa ao santo, prometendo-lhe que implantaria um cruzeiro em sua honra, caso a peste do jacu (bubônica) não chegasse até Matinha. Isso em 1922. Pesquisando um pouco mais, chegamos ao nome da autora da promessa, dona Antonia, falecida em meados de 2010, que não apenas cumpriu a tal promessa como doou terra para a construção da capela de São Roque, fundada oficialmente em 1942.
“Um episódio religioso que demonstra a fé da moradora da localidade que, inclusive, para esse fim, fez uma doação de terras, propiciando a posterior construção da igreja por ter a sua promessa a São Roque atendida. O quilombo é enfatizado como algo estanque em tempos passados, e que não tem qualquer vínculo com a maioria dos moradores entrevistados”, conta a pesquisadora Railma dos Santos Souza em sua dissertação de mestrado Memória e História Quilombola, Experiência Negra em Matinha dos Pretos e Candeal.
Francisca, a paroquiana e também mestra, complementa: “A comunidade-sede que é Matinha dos Pretos nasce de uma promessa em um período de pandemia, e a comunidade católica de Nossa Senhora Aparecida nasce associada à luta da terra aqui na comunidade do Candeal II. Então, são comunidades que já têm seu modo de expressar sua fé associada à vida, ao trabalho e à cultura. E a criação da paróquia pra mim vem fortalecer e acolher esse modo, essa forma das pessoas negras e de comunidades rurais expressarem sua fé”, diz.
As histórias de memória e fé do povo preto de Matinha estão preservadas. Matinha se originou da comunidade “Cerrado”, o primeiro grande quilombo de Feira de Santana e, portanto, o primeiro ponto de resistência. Não por acaso essa palavra aparece infinitas vezes no mestrado de Francisca. Suas linhas e sua própria história, a de uma mulher preta, católica, são a própria resistência.
Os relatos dos moradores mais antigos, que Francisca apresenta em sua dissertação, contam que cinco irmãos escravizados fugiram da Fazenda do Candeal e constituíram famílias, as quais se ramificaram e povoaram as comunidades. “Não sabemos exatamente de onde vieram; só sei que a minha bisavó foi pega no mato, mas sobre essas coisas não podemos ficar falando não, sabe”, disse um senhor de 88 anos cujo registro foi localizado por Francisca no Café com Beiju, Memórias do Cerrado: Saudades dos Parentes, evento realizado em setembro de 2017 pela ACDC no Candeal II.
Conta-se que o Cerrado era o centro cultural, educacional e de manifestações religiosas locais, e a Festa de Santo movimentava toda a região do município de Feira de Santana e ocorria durante os meses de dezembro, finalizando na primeira semana de janeiro com a festa de Santo Reis.
“Aquele Cerrado já foi o Cerrado, minha fia, ali é que era festa viu, tinha o oratório, o quarto do Santo, a casa de farinha e o cemitério. Nas noites de reza de São Cosme Damião, […] e nas festas de Deus Menino e de Santo Rei vinha gente de todo canto, era uma boniteza só, tinha barracas de comida, rifa, leilão as cantigas de roda, o pessoal da vargem da Teia, da Candeia Grossa da Formiga vinha de ante ajudar e participar da festa, ali que era festa”, registra o acervo comunitário da Associação do Candeal.
A partir dessa dinâmica de vida identificam-se objetos, símbolos e simbologias que observamos nas comunidades tradicionais quilombolas ainda muito presentes no cotidiano das populações, e inclusive das comunidades católicas.
A presença das matriarcas, as rezadeiras ou benzedeiras com o uso de ervas medicinais para curar doenças, por exemplo, compõe traços da identidade do povo negro católico. “Existem rezadeiras e benzedeiras espalhadas por todo o país, nas grandes cidades e no interior, nas áreas urbanas e rurais. (…) Geralmente esses benzedores utilizam apenas um conhecimento empírico sobre as ervas medicinais e a capacidade de usar sua intuição e força interior, sem qualquer compromisso com um rito religioso específico. Embora possa haver rituais de origem africana e ameríndia, o que predomina na benzedura é o apelo aos santos católicos a que a tradição popular atribui poderes de cura”, afirma Eneida Gaspar em seu livro Guia de Religiões Populares do Brasil, da editora Pallas.
Pesquisas registram essas mulheres como legítimas guardiãs das memórias de uma população, de uma cultura religiosa popular, e põem em xeque aqueles que erroneamente, por desconhecimento histórico ou racismo, apontam algumas das práticas como sincretismo religioso, em desrespeito inclusive a religiões de matriz africanas.
“Eu diria também que muitas vezes tendem a folclorizar o que é a nossa identidade, o que é de natural, nosso. […] O que é forte aqui na comunidade é a devoção aos santos e as rezas, que são tímidas e são feitas nas casas, porque historicamente foram muito silenciadas. Temos as rezas de São Roque, os benditos São José, Cosme e Damião. Isso ainda é muito forte”, conta uma Francisca feliz.
“Trazendo para o contexto político atual é preciso mais do que nunca a gente reafirmar a nossa identidade, a nossa existência, porque a todo momento tentam desqualificar a nossa existência, a nossa luta, a nossa identidade. A nossa paróquia vem também pra reforçar, reafirmar mesmo. Somos comunidade de fé sim”. (Francisca das Virgens Fonseca, membro da Paróquia Quilombola de S. Roque-Matinha, de Feira de Santana-BA)
Para o diácono Ibrahim Muinde, de 31 anos, que entrevistamos via plataforma digital, a experiência que tem vivido junto à Paróquia São Roque é única. Queniano e missionário da Consolata, ele conta o que tem encontrado e vivido em solo baiano. “Em meio a um mundo perdido, aqui a comunidade valoriza a identidade do povo negro dentro da diversidade criada por Deus. Conseguir perguntar a uma pessoa ‘quem você é, qual é o legado que vocês têm? Quem te orienta? Que são os seus antepassados? O que eles faziam?’ Aqui nessas comunidades quilombolas você encontra essas respostas, porque ser um diácono, um católico não me dissocia da minha cultura, do ser negro, e essa capacidade da Igreja de estar com o povo dentro da sua cultura, sem separar a identidade do povo, é muito bonita. Aqui a Igreja reconhece essa necessidade de cuidar da identidade do povo”, conta Muinde.
A valorização do povo preto dentro da Igreja Católica, algo que décadas atrás era impensável dada a sociedade e suas leis descaradamente racistas, parece responder ainda que oficiosamente a uma provocação do papa Francisco, que neste período reconvida a Igreja a ser sinodal.
“Temos a oportunidade de nos tornarmos uma Igreja da proximidade, que estabeleça, não só por palavras, mas com a presença, maiores laços de amizade com a sociedade e o mundo: uma Igreja que não se alheie da vida, mas cuide das fragilidades e pobrezas do nosso tempo, curando as feridas e sarando os corações dilacerados com o bálsamo de Deus”, disse o papa Francisco na abertura do Sínodo sobre a Sinodalidade, em 9 de outubro de 2021.
Para o diácono Muinde, reconhecer uma paróquia quilombola é ser uma Igreja sinodal, à medida que, respeitando a identidade dela, de seu povo, e não impondo [o jeito de ser] uma Igreja de Roma, reconhece-se a pluralidade dentro da Unidade. “Eu acredito que a falta dessa pluralidade e diversidade por muito tempo ao longo da história da Igreja Católica, especialmente no Brasil, fez com que a gente criasse comportamentos inaceitáveis”. O diácono está falando de racismo dentro da Igreja. Como um jovem negro que estudou teologia em São Paulo, ele sentiu na pele o preconceito racial. “Diversidade nunca se tornou um pecado nem para o próprio Deus porque ele mesmo nos criou diversos”, contou com o sorriso característico de quem se sente amado pelo próprio Deus.
Segundo Francisca, Candeal II tem uma trajetória religiosa plural e intensa, sendo a Igreja Católica a de maior predominância e influência, com uma histórica tradição de engajamento político desde a época dos seus conflitos agrários, quando os moradores encontravam amparo junto aos padres ligados à Teologia da Libertação, fundando em Candeal ações das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).
“Podemos inferir que até os dias atuais é possível identificar as características das Comunidades Eclesiais de Base no contexto comunitário local, pois no processo de reconhecimento como comunidade tradicional quilombola a comunidade católica da Capela Nossa Senhora Aparecida, através de suas lideranças locais, buscou junto à associação ampliar as discussões sobre a importância do reconhecimento enquanto comunidade tradicional quilombola, promovendo encontros e atividades celebrativas com o envolvimento de outras tradições religiosas”, contou Francisca.
Para ela, a existência dos quilombos brasileiros é “fruto de um processo histórico que remete ao período de colonização, em que muitos africanos foram violentamente arrancados de suas casas, sua terra mãe, desterrados de sua família e grupos sociais a que pertenciam para virem ao Brasil realizar trabalhos pesados, humanamente difíceis aos olhos e costumes do colonizador, sem contar que houve uma verdadeira devassa de todos os nossos recursos naturais, ou seja, um ato de expropriação dos nativos, homens da terra. Nesse quadro persistia a expropriação do povo negro, mesmo com a crescente resistência ao trabalho escravo e aos maus-tratos, a exemplo da separação de mães dos seus filhos, os castigos físicos e psicológicos vivenciados, a violência física e simbólica, entre outras atrocidades”.
Seria a paróquia quilombola uma reparação histórica, a manifestação da comunidade negra e, de certa forma, uma resistência negra frente aos novos modos de colonização, em defesa e manutenção da identidade do povo negro católico? Francisca nos responde: “Trazendo para o contexto político atual é preciso mais do que nunca a gente reafirmar a nossa identidade, a nossa existência, porque a todo momento tentam desqualificar a nossa existência, a nossa luta, a nossa identidade. A nossa paróquia vem também pra reforçar, reafirmar mesmo. Somos comunidade de fé sim”.
Fonte: Agência Signis