O olhar missionário

24 de setembro de 2020

Missionários da Consolata atuam em Feira de Santana, BA, junto ao povo afroquilombola de Lagoa Grande.

Por Leandro Chequela *

Nos tempos pretéritos, o fazer missionário teve como eixo de explosão a missão da Santíssima Trindade e se espalhava em diversas áreas da existência humana, formando o que se chamou de Missão Ad Gentes (evangelização às nações pagãs). Hoje a inclinação vai ao horizonte da perspectiva do olhar à revitalização da missão (dar vida ou reavivar a missão nas áreas de atuação missionária). Por conseguinte, em todo esse processo exige vontade e flexibilidade, sobretudo, a capacidade de deixar o olhar missionário enxergar as sementes do Verbo em cada passo da messe do Senhor, por onde trabalhamos.

No caminho, é exigido carregar nossa casa missionária (identidade missionária). Não podemos, portanto, ir e ir vazios dessa nossa casa, Ad Gentes senão corremos o risco de perdermos algo essencial a resgatar: aglomerados humanos ou um povo unido por laços estáveis de vida cultural, por antigas tradições sociais ou ainda que não recebeu a mensagem do Evangelho, ou mal ouviu falar dela, que vive perto de nós.

Nossos olhos detectaram essas características no povo afroquilombola de Lagoa Grande, do distrito de Maria Quitéria, no município de Feira de Santana, estado da Bahia, Brasil. É com ele que nos propomos caminhar. Daí o entusiasmo de partilhar nossa visão sobre ele.

Lagoa Grande

A comunidade quilombola Lagoa Grande tem esse nome por causa de uma lagoa de aproximadamente 6 km, que existiu durante muitos anos. Fornecia água para os habitantes do local. Sua fauna de diversas espécies servia como alimento para a população. Mas, com o passar dos anos, a lagoa foi sendo degradada e atualmente resta apenas um espelho de água.

As hipóteses da origem do povo quilombola na área são as seguintes: logo após a abolição da escravatura, entre os anos 1900 a 1911, “três irmãos, dentre eles Luiz Pereira dos Santos, foram morar na Lagoa Grande. Esses irmãos desbravaram o lugar, saindo das origens das Matas dos Pretos e, após se apossarem de uma parcela de terra propícia ao plantio e com água potável, decidiram residir naquelas terras conhecidas por Lagoa Grande e ali se instalaram e formaram suas famílias”.

O chão da comunidade quilombola Lagoa Grande possui sua larga história sobre o processo de acesso às terras. E assim como ocorre com outras comunidades tradicionais, esta passa também por importantes transformações, sobretudo, nas relações com o meio ambiente e sociedades do entorno. Esse povo também luta pelo direito aos recursos naturais, como água, terra e demais direitos sociais. O trabalho agrário e rural persiste de diversas formas.

Pois bem, se todos nós estamos unidos e vamos buscando um horizonte da revitalização da missão, é certo que aqui está este povo abandonado, aflito e necessitado do resgatar missionário. Se “a evangelização dos povos é o que nos caracteriza na Igreja; realizamo-la para glória de Deus, com santidade de vida, conforme o significado que o fundador lhe atribuía, quando proclamava: “primeiro santos, depois missionários”. Este fim deve impregnar a nossa espiritualidade, orientar as nossas opções e as atividades apostólicas. (Constituições Diretório Geral, missionários da Consolata, Roma 2006, n.5 pe. 26).

Aliás, o próprio Concílio Ecumênico Vaticano II nos recomenda unir-nos a eles (esses povos) com características afroquilombolas, como o de Lagoa Grande de Feira de Santana, por exemplo. Assim diz o Documento: “unam-se a esse povo com estima e caridade, convidem-se a si mesmos como membros dos agrupamentos humanos em que viveis, e participem na vida cultural e social através dos vários intercâmbios e problemas da vida humana; familiarizem-se com as suas tradições nacionais e religiosas; façam assomar à luz, com alegria e respeito, as sementes do Verbo neles adormecidas”. n.11 (287)

O povo afroquilombola de Lagoa Grande é resiliente e luta desde a abolição da escravatura (1900) até o dia de hoje pela resistência para conservar o que com esforço, suor e sangue, conquistou. Não obstante, mais que nunca, hoje ele precisa dum reforço nosso e uma palavra profética do Evangelho que se torne meio eficaz de resistência e de autoestima na preservação dos valores conquistados até o presente.

Alvo essencial

O Bem-aventurado José Allamano nos recorda: “em 1909, após um período de tempo relativamente breve desde a fundação, foi-nos dado o ‘Decretum Laudis’ do Instituto, que além do mais, aprovava – e gosto de o recordar – o nosso método de evangelização com as seguintes palavras: uma característica destas missões é que os seus missionários não se limitam a implantar a religião, mas juntamente com o esplendor da fé, levem a esses povos a luz da civilização, preparando-os para os trabalhos agrícolas, criação de gado e outros ofícios mais comuns…” (carta do pai fundador aos missionários da Consolata apresentando as Constituições no dia 20 de junho de 1923 – festa de Nossa Senhora Consolata).

Como missionários, acreditamos que o nosso olhar enxergou o alvo essencial necessitado do iminente resgate. O nosso espírito missionário está pronto, carregado de fogo. “Tu me seduziste Senhor e eu me deixei seduzir… meu coração como um fogo devorador, encerrado em meus ossos” (Jr 20, 7-9). Cremos que diante disso não podemos nos distanciar de nossa função como missionários.

“Assim como Cristo percorria todas as cidades e aldeias, curando todas as doenças e todas as enfermidades, proclamando o advento do reino de Deus do mesmo modo, por meio de nós, seus filhos, estabelece relações com os povos de qualquer condição, de modo especial com o povo quilombola, os pobres e aflitos e de bom grado por eles nos propomos gastar as nossas forças. Participaremos das suas alegrias e dores, conhecendo as suas aspirações e os problemas da sua vida e sofreremos com eles na ansiedade da morte, trazendo-lhes a consolação, a paz e a luz do Evangelho”. Cfr. Vat. II (Ad Gentes n.12)

Assim como o próprio Cristo perscrutou o coração dos povos e por meio da sua conversação verdadeiramente humana os conduziu à luz divina, assim os seus discípulos, profundamente imbuídos do Espírito de Cristo tomemos conhecimentos dos meios dos quais vivemos, e conversemos com os povos para que, através de um diálogo sincero e paciente, aprendam as riquezas que Deus liberalmente outorgou a eles, mas esforcem-se também por iluminar essas riquezas com a luz evangélica, por libertá-los e restituí-los ao domínio de Deus Salvador. Cfr. Vat 287-288

Nesta fase inicial da articulação e inserção, como afirma o Vaticano II, “precisamos tomar parte nos esforços dos povos que, lutando contra a fome, a ignorância e a doença, se afadigam por melhorar as condições de vida e por assegurar a paz ao mundo” (Ad Gentes n.12). Intimamente unidos com os povos na vida e no trabalho, nós discípulos de Jesus, esperamos oferecer-lhes o verdadeiro testemunho de Cristo e trabalhar para a salvação deles, mesmo quando não podemos anunciar plenamente o Mestre. Porque o que queremos é promover a sua dignidade e fraterna união, ensinando as verdades religiosas e morais, que Ele esclareceu com Sua luz. (Ad Gentes n.12)

* Leandro Chequela, imc, é missionário em Feira de Santana, BA.

Conteúdo Relacionado