O Novo normal são as anormalidades que já vivenciamos

21 de julho de 2020

A natureza nos surpreendeu e nos prostrou sob a relatividade das causas e seus efeitos, demonstrando a nossa existência vulnerável ao tempo e ao espaço, em face de um invisível organismo acelular tóxico.

Por Márcio Oliveira Elias*

A história nos conta que os traumas da odisseia humana não trazem redenção. Estamos vivenciando tempos sombrios e silenciosamente perigosos, sem o sadio gozo da reflexão consciencial entre as pessoas, mas que não é uma novidade na correnteza dos tempos. Dois séculos e algumas dezenas de anos nos separam da Revolução Industrial; momento histórico que incitou as revolucionárias realidades que se seguiram até o terceiro milênio. Necessário recorrer ao inventário de memórias construídas ao longo desse espaço de tempo para refletir sobre os passos que deu, que dá e que dará a humanidade.

O caminhante humano construiu ideias de valorização da vida, de respeito às diversidades e interiorização de preceitos éticos no curso da contemporaneidade, mas não há entusiasmo no entendimento de que as pessoas serão positivamente transformadas após o fim desse tempo pandêmico. Não haverá redenção, como nunca houve nas iguais catástrofes humanitárias ocorridas em guerras, genocídios, pestes e flagelos históricos pretéritos. Na consequência do incerto e da novidade mortal invisível do vírus, muitas pessoas poderão olhar algumas questões numa perspectiva diferenciada e, certamente, avalizada pelo senso comum e dúbias informações que pululam nas dominantes redes sociais; contudo, quando se olha a humanidade no curso intrépido de sua história, percebemos que nunca houve sinais de que os traumas sofridos redimiram a sua caminhada.

Segundo a pesquisa científica, vírus são hoje os únicos organismos acelulares do planeta; são seres simples formados basicamente por uma cápsula proteica envolvendo o material genético. A palavra vírus vem do latim, que significa ‘veneno’ ou ‘toxina’, atualmente utilizada para descrever organismos biológicos, mas também e metaforicamente a qualquer coisa que se desenvolva de forma parasitária ou tóxica, como ideias ou mecanismos de informação. Somos um planeta com quase oito milhões de espécies de seres vivos conhecidos, sendo que os vírus representam próximas quatro mil espécies diversas. Nesta perspectiva estamos numa flagrante desvantagem numérica no comparativo das forças.

Dor e medo

O que conhecemos neste momento é uma partícula basicamente proteica chamada de Covid-19, da família Coronaviridae, que pode infectar o nosso organismo e desconstruir a nossa fugaz autossuficiência, significando mais uma possibilidade irremediável do nosso destino: a morte. Nossa dimensão humana possui dois sinais protetivos e resolutivos primitivos relacionados à sobrevivência: a dor e o medo. Sentimos dor e assim sabemos que algo está ameaçando o nosso constitutivo corporal. Sentimos medo e assim sabemos que algo está ameaçando o nosso constitutivo consciencial. A partir desses sinaleiros tomamos escolhas e rumos de proteção ou resolução, que preservarão a espécie que somos ou que pretendemos ser nesse caminho de viver. Contudo, a dimensão da preservação da espécie humana esta cada vez mais comprometida por escolhas delitivas, que refazemos sem muito pensar todos os nossos dias.

Contemplando a fina linha do tempo humano vemos por volta dos anos 1500 que a população mundial estava em torno de 450 milhões de pessoas. Por volta dos anos 1800, com o início da Revolução Industrial, a população mundial chegou a 1 bilhão de habitantes. A marca de 2 bilhões de habitantes foi atingida em 1927, seguida dos 3 bilhões marcados em 1960. Os 4 bilhões de habitantes do planeta chegam em 1974; 5 bilhões em 1987; 6 bilhões em 1999 e 7 bilhões em 2011. Os números recentes mostram que a humanidade tem adicionado 1 bilhão de habitantes a cada 12 ou 13 anos. A marca de 8 bilhões deve ser atingida entre 2023 e 2024, pois aprendemos biblicamente a crescer e nos multiplicar.

Somos bilhões de humanos que gradativamente perdemos a percepção do sinal protetivo e resolutivo do medo. Nossa cultura superlativa de suficiência nos fez dominadores do planeta; construtores de uma personalidade megalômana que está desprezando os mais elementares sentidos de sua própria sobrevivência. Sem o medo existencial da autodestruição reprimimos a percepção do segundo sinal protetivo e resolutivo primevo, a dor consciencial em nós mesmos e dos outros humanos parceiros planetários. Tornamo-nos socialmente insensíveis às injustiças e indignidades que nos envolvem pela cultura do consumo e do relativismo; as exceções existentes somente confirma esta sombria realidade de todos nós, entardecidos na indiferença.

Nossa cultura superlativa de suficiência nos fez arrefecer os sinais protetivos de medo e dor, nos deixando num estado inebriado de certezas inúteis, que nos coloca em nível de desconhecimento das fatalidades que se avizinham em nossa história; onde o maior perigo é achar que não há perigo algum. O sucesso entronizado ao final do século 19, onde a ciência e o progresso expandiram o horizonte medievo, alcança o limiar do século 20 com um mundo repleto de descobertas tecnologias inéditas e fantásticas, acrescidas de formas inovadoras de comunicação e contato interpessoal em tempo real, estabelecendo as aparências de um controle humano absoluto sobre o tempo, o espaço e as “criaturas inferiores” do planeta.

No curso das duas décadas do luminescente século 21, imaginamos a continuidade do poder sobre-humano conquistando as galáxias e a imortalidade das idades; mas a natureza nos surpreendeu e nos prostrou sob a relatividade das causas e seus efeitos, demonstrando a nossa existência vulnerável ao tempo e ao espaço, em face de um invisível organismo acelular tóxico. Entramos em estado de surpreendente torpor, pois a nossa garantia de racionalidade superior não nos mostrava o quanto de ódio e rancor estavam represados em nossas consciências diluídas pela insensibilidade e indiferença comuns. Agora sabemos que não existimos pedra; somos carne que apodrece.

Perplexidade

Estamos conhecendo uma circunstância inédita em algumas gerações, sem indicativo de solução em tempo real pelo qual o mundo instantâneo das nossas certezas inúteis nos acostumou viver. Estávamos confortáveis na satisfação imediata de nossos desejos, onde a demora das soluções para deter um organismo acelular invisível nos surpreende. Aguardamos um ‘control-c / control-v’ de uma resposta que ainda não existe; não temos um ‘print’ da solução que queremos compartilhar em nossas redes integradas de futilidades. As informações científicas circulam com a mesma rapidez de sua leitura fugaz e sem maior reflexão, o que gera o desconhecimento da realidade pela imensa maioria das pessoas. São medicamentos imunizantes ou tratamentos salvadores que se dissipam e contaminam as ilusões do nosso imediatismo.

A ciência nunca se considerou infalível, salvo os espasmos de erudição arrogante de alguns, mas certamente a ignorância é a falência da consciência. Estamos diante de um esforço coletivo mundial no espectro científico, objetivando encontrar uma solução que preserve a caminhada humana neste planeta. Neste momento pandêmico retomamos atabalhoados os dois sinais protetivos de medo e dor represados pela nossa empáfia pseudossuficiente, imprimindo nas pessoas diferentes desejos e propósitos de vida. Alguns temem pela contaminação e promovem o discurso pró-vida; outros temem pela miserabilidade e promovem o discurso pró-trabalho. Todos querem a cura mais breve que o impossível; afirmam agora um “novo normal” que virá, mas que nada mais é do que as anormalidades já vivenciadas pela distância que tomamos da nossa própria humanidade.

Apesar de todos os esforços e exemplos de resiliência e solidariedade que sempre existiram em tempos de crise, penso que as pessoas não sairão dessa pandemia simplesmente transformadas em agentes transformadores da realidade, promotores de paz e de dignidade universalizadas. Não creio nessa redenção, mas acredito que haverá o desejo incontido de que esses valores humanizantes tenham o seu lugar enfático no mundo. Também não acredito que as pessoas simplesmente ficarão do mesmo modo, pois certamente já está acontecendo um olhar diferenciado das coisas e das formas de relacionamento.

A crise pandêmica nos mostrou que nossa a cultura superlativa de suficiência não nos fez dominadores do planeta, mas apenas detentores de uma personalidade megalômana que desprezou a humanidade que nos fez espécie diferenciada no planeta. São tempos de perplexidade diante de nossa evidente fraqueza, mas que a urgência de sobreviver exige e impulsiona a necessidade de regeneração das estruturas relacionais e socioeconômicas, nos revelando à inutilidade de nossos preconceitos e ilusões inconsequentes que nos trouxeram ao liminar da extinção de uma espécie unitária e frágil no planeta.

* Márcio Oliveira Elias é Advogado e Professor de Teologia Pastoral. Atua na formação permanente de agentes pastorais e fiéis leigos na Diocese de Cachoeiro de Itapemirim/ES.

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