A Diocese de Pemba está localizada na Província de Cabo Delgado, norte de Moçambique. Nessa região, nove distritos (municípios) enfrentam, há três anos e seis meses, uma guerra que tem deixado mortes, destruição e penalizando sobretudo os mais pobres.
Por Edegard Silva Júnior *
O sonho do recém transferido bispo de Pemba, Dom Luiz Fernando Lisboa, agora bispo de Cachoeiro de Itapemirim (ES) no Brasil, era conseguir agentes de pastoral para atender a região, constituída pelos distritos de Mocímbua da Praia, Palma, Nangade, Mueda, Muidumbe, Mocomia, Meluco, Quissanga e Ilha do Ibo. Assim aconteceu! Além dos missionários que aqui já residiam, várias outras congregações religiosas enviaram pessoal. Hoje atuam nessa região, 35 missionários e missionárias, seis moçambicanos e os demais provenientes de oito países.
Região rica e povo pobre
Esse território exuberante contém enormes reserva de gás, descoberta recentemente, além de madeira, grafite, pedras preciosas, petróleo, entre outros. Todos esses recursos naturais e minerais fazem crescer a ganância de muita gente poderosa, cujas intenções consistem em explorar a região.
Por outro lado, o povo local em nada usufrui desses bens. Suas pequenas aldeias são formadas por uma população trabalhadora e pobre. Os moradores vivem da agricultura familiar; cultivam principalmente o milho branco, principal produto da alimentação; levam, desse modo, uma vida simples entre o trabalho na lavoura (machamba) e o dia a dia em comunidade. A depender do distrito, essa realidade é mesclada pelo convívio entre as diversas culturas (macua, maconde, etc ) e as expressões religiosas (mulçumanas e cristãs).
Os missionários saletinos chegaram à diocese de Pemba em dezembro de 2017. A guerra iniciara em outubro desse mesmo ano. Entre nós, desenvolvemos uma maneira de nos informar sobre as notícias de cada distrito. Como fazíamos parte da mesma região pastoral, acompanhávamos a realidade de cada lugar e, quando acontecia algum ataque em Mocímbua da Praia, Macomia, Quissanga, Meluco, Palma e Mueda, ficávamos sabendo imediatamente.
Planalto do Povo Maconde
Muidumbe tem uma população de 79 mil habitantes, sendo a segunda missão mais antiga da diocese. Em nosso planejamento pastoral, estávamos a conversar sobre a preparação dos festejos dos 100 anos da missão, que “deveria” acontecer em 2024.
O distrito de Muidumbe é conhecido como “Planalto do Povo Maconde”. Em suas aldeias, são faladas as línguas shimaconde e portuguesa. Esse distrito é formado por 26 aldeias, sendo que dezoito delas já foram atacadas. A primeira aldeia atingida pelos ataques foi a Aldeia de Criação, no dia 07 de novembro de 2019. Depois desse ataque nunca mais tivemos paz.
As demais aldeias foram atacadas em épocas diferentes: Magaya, Chitunda, Rua Rua, 1º de Maio, Miangalewa e Xitaxi, onde aconteceu o massacre de 52 jovens, entre outras. A sede da missão saletina ficava na aldeia de Muambula. Tínhamos uma boa infraestrutura para atender a população: um templo espaçoso; uma escola primária e secundária com três mil alunos matriculados; uma escolinha/creche que atendia cerca de 80 crianças; a rádio comunitária São Francisco de Assis; um ambulatório dentário; a casa dos padres, a casa das irmãs, o poço, salas de catequese, dormitórios, cozinha, refeitório; a associação dos pequenos agricultores. Tudo isso foi destruído com os ataques que aconteceram entre 31 de outubro e 19 de novembro de 2020, quando os terroristas invadiram e tomaram conta da aldeia.
Ataque de abril de 2020
Em Muidumbe, houve o primeiro ataque no mês de abril de 2020 quando os terroristas destruíram o único hospital, a pequena agência bancária, o posto de gosolina e os prédios da administração. Após esse ataque, fugimos para Pemba.
Dói o nosso coração quando vemos que tudo se transformou em cinzas e destroços. Temos esperança de um dia voltar, mas sabemos que se levará um bom tempo para reerguer o que foi queimado e destruído. Sabemos que as estruturas de concreto – a emissora de rádio, o templo etc. – são possíveis de serem reconstruídas, mas nunca teremos de volta as muitas vidas que foram ceifadas de forma violenta; corpos decapitados, jovens sequestrados, crianças desaparecidas. São relatos ouvidos que nos cortam o coração.
Neste momento, nossa preocupação maior não é reconstruir prédios, (até mesmo porque nem está previsto), mas tentar ajudar a refazer as histórias de vidas das pessoas que sobreviveram, muitas delas entristecidas e chorosas pelos seus familiares assassinados ou desaparecidos.
A tristeza está estampada no rosto de cada pessoa deslocada. Vivemos um luto profundo que afeta todas as expressões da vida comunitária: a língua falada entre eles, os costumes, os cantos e danças, as festas do povo. O canto de alegria deu lugar ao pranto. O som forte da dança do Mapiko deu lugar ao silêncio. Assemelha-se à dor do exílio, da diáspora forçada, tal como viveu o povo de Deus no Antigo Testamento.
Nós, os missionários, também sentimos saudades. Gostaríamos muito de estar presentes na comunidade, exercendo a missão que nos foi confiada.
A fuga para o mato
Quando acontece o ataque, a população foge para mato. Algumas famílias costumavam a combinar entre si como proceder no momento da chegada dos terroristas. Mas o mal não avisa quando chegará, e essas famílias são pegas de surpresa.
As pessoas ficam no mato em condições precárias, passam fome e sede até conseguirem meios de chegar a uma cidade fora da área da guerra. Ouvimos relatos tristes dessa indesejada “travessia”. Ajudamos muitas famílias a “fugir” da mata para a cidade pagando-lhes o transporte. Nessa hora, agradecemos o gesto da solidariedade de muitas pessoas. Chegam a Pemba ou outras cidades e vão para as casas de familiares ou de conhecidos. Muitas casas chegam a receber de 20 a 30 pessoas, enquanto outros vão para os assentamentos criados pelo governo moçambicano, também marcado pelas condições extremamente precárias.
O rosto fala…
Depois de tantos dias no mato, passando por todo tipo de privação, eles chegam com o rosto desfigurado, triste e preocupado. São acometidos de muitas doenças (diarreia, anemia, malária), com maior prevalência nas mulheres e crianças. Muitas dessas mulheres deixaram filhos e esposos perdidos, isso quando não presenciaram o rapto ou o assassinato de seus familiares. Assim, além da debilitação física, trazem consigo situações emocionais que merecem cuidados psicológicos.Quase sempre elas são acolhidas por pessoas das organizações humanitárias e da ação pastoral da diocese de Pemba, através da Cáritas e das paróquias.
O trabalho humanitário
A presença das diversas organizações humanitárias assegura a ação básica para quem chega, dando-lhes: lona, balde, roupa, remédio, alimentos. Cada uma realiza o que pode. Nessa guerra, sempre somos surpreendidos por uma nova situação. Já se fala em mais de 700 mil deslocados presentes nas diversas cidades.
Nós, missionários e missionárias, estamos também nesse exílio, procurando entender o que Deus está a nos dizer. A oração medieval da Salve Rainha expressa nossa vivência: “gemendo e chorando neste vale de lágrimas”.
É preciso denunciar
A diocese de Pemba vem há muito tempo denunciando essa onda de violência. Quando estávamos na região norte, em Muidumbe, falávamos da guerra e da segurança em cada encontro com o povo. “Se calarem a voz dos profetas as pedras gritarão!”
Enquanto missionários, percebemos o aumento da violência e a atualização dos meios utilizados para violentar as pessoas. No início, os terroristas faziam uso de catanas (grandes facões utilizados na lavoura) e, atualmente, utilizam armas pesadas e sofisticadas, de grosso calibre.
O dia a dia do povo era marcado por ações simples: buscar água no poço, pilar a farinha, sentar-se ao chão, em frente da casa, para conversar etc.Tudo isso foi interrompido. Não existe mais paz. Prevalece o medo. Em cada ataque a um distrito da região, todos ficam apavorados, como a dizer: “vão nos atacar também”…
Silêncio ao tratar dos motivos desta guerra…
Entre a população nem sempre era possível conversar sobre os “motivos da guerra”, por causa do medo ou pelo fato de simplesmente não saber. Da parte das autoridades, nenhuma explicação oficial era passada para população. Um silêncio que também dava medo. Chegou-se a falar de um “rosto oculto da guerra”. Só que essa guerra tinha rosto, e rosto cruel, e quem o percebia era a população que via de perto os terroristas a matar e atacar suas casas e comunidades.
Fala-se numa somatória de fatores. Cremos que entre eles está também o fundamentalismo religioso, que levam ao extremo às regras das práticas religiosas. Em Moçambique, é expressiva a presença dos mulçumanos. O que em nada tem a ver com o fundamentalismo extremista. Temos aprendido, sobretudo com o Papa Francisco, a necessidade de conservar a dimensão do diálogo, do respeito e do bem viver entre as religiões. Posso afirmar que, nesses três anos, no distrito de Muidumbe, nunca presenciamos conflitos religiosos ou desentendimentos entre vizinhos por motivos religiosos.
O ataque recente ao distrito de Palma
Das nove localidades, apenas Mueda não foi atacada. Circulam “boatos” de que novos ataques acontecerão. No dia 24 de março, o distrito de Palma foi tomada em plena luz do dia. Nessa região está o grande investimento da multinacional francesa “Total”. Essa empresa tem investido milhões de euros para a construção da “cidade do gás”. Em Palma, viviam pessoas das organizações humanitárias e funcionários da empresa, sendo eles moçambicanos e estrangeiros.
Comenta-se que houve mortes violentas, marcadas por decapitações e raptos. Aos pobres restou novamente o mato; e, mais uma vez, Pemba e outras cidades recebem os deslocados que chegam em busca de teto, pão e dignidade.
Cabo Delgado quer Paz! Na sua prece e da comunidade que você participa, coloque a intenção pela paz em Moçambique. Essa guerra precisa ser denunciada. Necessitamos de seu apoio para continuarmos com a ação humanitária.
* Padre Edegard Silva Júnior, ms, missionário saletino em missão na diocese de Pemba. Pároco da Missão de Muidumbe, destruída pela guerra.