No ano de 2008, o Papa Francisco reconheceu o martírio das quatros testemunhas riojanos do Evangelho, Angelelli, Pedernera, Murias e Longueville. Foram beatificados no dia 27 de abril de 2019, em La Rioja, como modelos bem aventurados de vida cristã.
Por Marcelo Daniel Colombo*
Dom Enrique Angelelli nasceu em Córdoba, no dia 17 de julho de 1923, no seio de uma família de simples trabalhadores italianos. Ainda criança experimentou o chamado ao sacerdócio, chamado este que cultivou no seminário Nossa Senhora de Loreto.
SACERDOCIO
No meio da formação sacerdotal, foi enviado a Roma, onde concluiu a Teologia e recebeu a sagrada ordem em 1949. Mais tarde, estudou direito canônico, também na Universidade Gregoriana de Roma, em 1951 retornou para sua querida Córdoba para se entregar com entusiasmo ao exercício do ministério.
Sendo sacerdote do clero cordobés, aproximou-se do mundo dos mais pobres na zona de la Cañada como responsável pela Capela Cristo Operário. Destacou-se atuando como assessor da JOC (Juventude Operária Católica), animador da pastoral universitária, docente e educador no Seminário, e colaborador nos serviços da cúria.
EPISCOPADO
No final de 1960 foi designado bispo auxiliar de Córdoba, colaborador do arcebispo, Dom Castellanos. Recebeu a ordenação episcopal em março de 1961 e rapidamente destacou-se pela adesão entusiasmada pela realização do Concílio Vaticano II, convocado por João XXIII, da qual participou em três das suas quatros sessões. Foi um interlocutor atento dos distintos setores da sociedade cordobesa e um pastor próximo dos sacerdotes, inclusive dos mais velhos, com os quais compartilhava as instalações e a vida no lar sacerdotal.
A aplicação do Concílio Vaticano II encontrou muita resistência em diferentes setores da Igreja. Córdoba não foi uma exceção. Isto se traduziu em diferentes episódios que desvelaram o descontentamento de alguns setores do clero cordobés que foi recebido por Dom Angelelli para escutá-los e agir sem sucesso, como uma ponte de diálogo com o arcebispo. Como resultado destas tensões, o bispo Dom Castellanos renunciou e foi substituído por Dom Primatesta. A partir das mudanças que aconteceram na dinâmica eclesial cordobesa, Dom Angelelli continuou realizando um intenso trabalho pastoral, agora nos povos mais afastados de Córdoba, visitando comunidades bastante necessitadas do consolo e a esperança do Evangelho, anunciando com clareza e simplicidade pelo “prelado”, como era conhecido.
Em 1968 foi nomeado bispo de La Rioja, diocese situada em um dos estados mais pobres do país, por causa dos inúmeros condicionamentos, bastante enraizados na sua estrutura social, cultural e econômica. Ele foi recebido por um povo fervoroso que necessitava de um pastor segundo o coração de Cristo, no dia 24 de agosto de 1968. Dom Angelelli assumiu sua nova missão com o lema “Justiça e Paz”, em uma celebração que antecipou sua intensa atividade pastoral de “pastor Terra adentro”. Com a constituição conciliar Gaudium et Spes em mãos, revelou aos riojanos seus desejos de colocar a Igreja a serviço da transformação dessa dura realidade social.
RENOVAÇÃO DA DIOCESE
Na religiosidade riojana, seus patronos, São Nicolás e el Niño Alcalde, não são meras referências devocionais. Portanto, a celebração anual do Tinkunaco (encontro), evoca não só um conflito entre espanhóis e povos originários, apaziguado pela intervenção da Igreja, no qual ambos os setores entregaram os signos de autoridade nessa sociedade nascente ao menino Deus vestido com roupas de prefeito. Também expressa com solenidade a vontade da comunidade riojana, de crescer como uma fraternidade de gente iluminada pela fé. Longe de alienar, a religiosidade do povo é força que transforma sua vida com o olhar e o coração em Deus. Dessa maneira soube interpretar Dom Angelelli, fazendo dessa festa religiosa um convite para renovar a vida do seu povo, levando-o dos bairros para o centro da cidade.
Dom Angelelli se dedicou a trabalhar arduamente na renovação interna da diocese sob sua responsabilidade, gerando espaços de discernimento em assembleias e reuniões, bem como de atuação pastoral orgânica por meio da interação em comunhão sacerdotal, religiosos e leigos. Atraídos pela possibilidade de participar ativamente de uma experiência de Igreja evangelizadora e transformadora da realidade, várias comunidades religiosas masculinas e femininas se estabeleceram para acompanhar a missão do bispo. Em todos os casos, a primeira recomendação que ele lhes fazia era para tomar muito mate e escutar o povo antes de qualquer desenvolvimento pastoral, aplicando concretamente aquela máxima do seu trabalho pastoral “com um ouvido no Evangelho e o outro ouvido no povo”. Este modo de ser e fazer Igreja, gerou resistências e fúrias em pequenos grupos de poder, inclusive eclesiais, que enxergavam em Angelelli um demônio que veio privá-los dos seus privilégios.
A missa dominical, transmitida via rádio, foi um instrumento eficaz de comunicação entre Angelelli e seu povo. Chegava até os povos e lugares remotos do estado, no qual com gestos simples de proximidade e profundidade evangelizadora, o bispo incentivou um novo tempo para a fé dos crentes. Por isso ele foi silenciado, para calar a voz do mesmo Cristo através dele. Primeiro cortando a transmissão das missas, depois tirando a sua vida.
Deve ser destacada a intensa atuação de Angelelli em iniciativas sociais destinadas a transformar a sorte postergada de numerosos setores: o sindicato das empregadas domésticas (quase escravas do regime feudal), sindicato dos mineiros, formação de cooperativas agrárias que tinham por objetivo superar a improdutividade dos latifúndios em benefício daqueles que trabalhavam a terra, a recusa crítica da instalação de cassinos que aprofundaram a pobreza e favoreciam a usura. Os setores poderosos fizeram escutar sua voz, inclusive fundando um diário para desprestigiá-lo. Reclamaram com diferentes autoridades eclesiásticas daquele tempo, mas não antes de provocarem incidentes de extrema violência, como expulsar o bispo de uma procissão (Anillaco, 13 de junho de 1973), ou colocar bombas em seus colaboradores, antecipando abertamente sua posterior eliminação física em 1976.
Uma visita pastoral de Dom Zaspe, em nome do Papa Paulo VI, confirmaria a eclesialidade e ortodoxia da linha pastoral do bispo Angelelli. O mesmo Papa o incentivou a continuar trabalhando nessa perspectiva de unidade com a Igreja universal, enchendo de consolo e esperança o coração do pastor perseguido e caluniado.
Ditadura militar e martírio
Com o advento da ditadura militar (24 de março de 1976), acabaram as garantias constitucionais e cresceram as ameaças e intervenções sobre a vida do bispo, sacerdotes, religiosos e leigos. Mandados de buscas, apreensões, detenções, caracterizaram o novo período. Angelelli o manifestaria através de uma espiral na qual seria o destinatário final das medidas intimidatórias. Entretanto, não quis se distanciar do seu país, mas permanecer fiel e presentes junto aos seus. Em poucas semanas, o terrorismo de Estado o mataria (4 de agosto de 1976), depois de assassinar dois sacerdotes de Chamical, Frei Carlos de Dios Murias e O P. Gabriel Longueville (18 de julho) e a um leigo em Sañogasta, Wenceslao Pedernera, trabalhador rural e pai de família, diante da sua mulher e filhas (25 de julho).
Quase 40 anos se passaram para que a justiça argentina esclarecesse e castigasse estes cruéis episódios. No caso de Angelelli, não só lhe roubaram a vida, mas também desejaram roubar a sua morte, negando e atribuindo o atentado a um mero acidente de carro com sucessivos e incríveis motivos. Embora a Igreja argentina não tenha condenado orgânica e enfaticamente aquilo que sucedeu, acatando a explicação do acidente, um punhado de bispos, De Nevares, Hesayne, Novak e Mendiharat (de Uruguai) elevaram em 1983 sua voz pedindo a investigação do assassinato de Angelelli.
Em junho de 2018, o Papa Francisco reconheceu o martírio das quatro testemunhas riojanos do Evangelho, Angelelli, Pedernera, Murias e Longueville. Eles rubricaram com suas vidas e seu sangue o Evangelho de Jesus Cristo. No dia 27 de abril de 2019, eles foram beatificados, como modelos de vida cristã, em uma comovedora celebração presidida pelo Card. Becciu, em La Rioja.
+ Mons. Marcelo Daniel Colombo, é arcebispo de Mendoza (Argentina).