O Mito da Democracia Racial

30 de outubro de 2020

Esta reflexão tem como objetivo desconstruir o mito da democracia racial que se fortaleceu durante uma longa história na sociedade brasileira, trazendo a ideia do que no país não existe racismo.

Por Jacques Kwangala Mboma *

A teoria de Gilberto Freyre na obra “Casa Grande e Senzala” contribui para o pensamento que ao mesmo tempo é subjetivo e objetivo de valorização da miscigenação como produto de uma identidade nacional. A força das ideias de Gilberto conseguiu estabelecer uma identidade brasileira como uma categoria homogênea na sociedade. Por consequência, o racismo foi naturalizado e institucionalizado. Gilberto defende o argumento de que a miscigenação foi necessária para o Brasil, levando em conta que ela conseguiu produzir uma harmonia racial. Para ele, os negros se adaptaram melhor, num clima fértil para reprodução entre brancos e índios. Por meio da miscigenação, cada um desses grupos teria em comum a mesma alma. O que levaria a extinção das diferenças identitárias e singulares.

Histórico

Antes de tudo, a história do racismo se desenvolveu no Brasil com vários pensadores, entre outros Joseph Arthur Gobineau, Sílvio Romero e Raimundo Nina Rodrigues. Gobineau era filósofo francês e foi diplomata no Brasil. Para ele, a miscigenação era uma degeneração. Quanto a Raimundo, conhecido como um dos primeiros médicos brasileiros, formado em Salvador, inspirou-se da teoria de Gobineau quando publica sua obra, “os africanos no Brasil”, associando a raça brasileira à miscigenação como um suposto atraso brasileiro, um defeito indesejado. O que justifica esse fundamento é a presença do negro na composição da identidade brasileira.

Após a Abolição de 1888, houve uma grande campanha para extinguir a população negra no território nacional e trazer os imigrantes para reforçar a economia. Portanto em plena vigência, o resultado da expectativa econômica da monarquia e da Proclamação da República de 1889 foi frustrado. Os negros continuavam a ocupar a maior parte do território nacional, sendo cerca de quatro milhões vindos da África em condição de escravizados. As primeiras tentativas de extermínio dos negros foram as proibições de manifestações culturais, capoeira e a religião de matriz africana, conhecida como candomblé. Isso consta no Código Penal de 1890 (Capoeira, Vadios e Curandeiro). A penalidade para quem não cumpria a Lei era prisão de um a seis meses, mais multa de 100$ a 500$. No governo de Vargas (1951-1954) se publica o “Decreto Lei n. 202, de 08 de abril de 1939 Art. 33. É vedado ao Estado e ao município: 3-Estabelecer, subvencionar ou embargar o exercício de cultos religiosos afros”.

Após a Abolição, os negros eram impedidos de trabalhar com vínculo empregatício. A pergunta que se faz: como os que cometiam delitos poderiam pagar a multa se eram impedidos de trabalhar? Os negros foram resistentes. A prova disso é que várias revoltas foram organizadas em todo o território, a mais famosa foi a de Palmares com seu líder Zumbi. Os negros se serviram frente à guerra da Cisplatina entre o Império do Brasil e as províncias Unidas do Rio, em disputa do território conhecido como Banda Oriental, onde se localizam hoje o Uruguai e uma parte do Rio Grande do Sul. Muitos negros perderam suas vidas no campo de batalha.

De certa forma, a população negra resistiu. A existência de uma nova política de branqueamento surge no país. João Batista Lacerda foi um dos defensores dessa teoria e defendia a ideia de que o branqueamento da população brasileira serviria para o desaparecimento do elemento negroide no Brasil. Por este motivo, o país tinha que transportar a segunda onda de imigração de preferência da raça nórdica, “ariana” para o Sul e o Oeste do Brasil. A população negra hoje segundo o IBGE é de 54%, da qual são mestiços de várias espécies: preto e pardo.

Raça

A obra de Gilberto Freyre vem romper o conceito de raça como demarcação entre os grupos sociais. A raça não deve ser um tema abandonado como pensam alguns estudiosos. O conceito de raça é necessário para estudar as políticas públicas no Brasil, já que vivemos num país onde há uma grande desigualdade entre brancos e negros. Os estudos de raça ajudam a entender a situação dos quilombos, as ações afirmativas ou cotas raciais, a questão indígena, entre outras. Não podemos negar que o conceito de raça está na origem de criação do racismo, portanto a negação em conhecer o que é a raça está na base de manter a supremacia branca. O racismo é algo que se infiltra em todos os mecanismos da sociedade. Nenhum desses últimos está isento dos atos de racismo. Para o filósofo Achille Mbembe, o racismo se manifesta na forma do governo “Necropolítico”. Isso é um processo de dominação e controle do Estado que tem por sua vez o poder de decidir quem deve viver ou morrer.

No Brasil, o racismo exerce o controle sobre o gênero cuja população negra é a maior vítima. Vivemos num país onde a maioria da população é negra, mas nas mídias nem chega a 1% nos programas de TVs e outros. Os negros estão ausentes nos cargos elevados das igrejas, na política, nas grandes empresas, nos bancos multinacionais, na educação, na saúde, quando conseguem uma responsabilidade se espera que seria de posição subalterna. É comum quando se pergunta a alguém “você é racista?”. Você ouvirá dizer “não sou, mas meu pai ou minha mãe é racista”. O racismo não é questão individual, mas trata-se de uma responsabilidade civil. Vivemos numa realidade onde o racismo se naturalizou e se tornou institucional. As violências se perpetuam com a população negra, com a morte de uma pessoa a cada 23 minutos no país. Não estamos conseguindo enfrentar o nosso pior inimigo.

A pergunta que podemos fazer é: “Quem é o nosso inimigo e por que devemos combatê-lo?” O pior inimigo é aquele que a gente não vê, o nosso inimigo é o racismo quando nós negamos a sua existência nas relações humanas. Se nós não fizéssemos a nossa parte, lutar contra o racismo, então estaríamos a favor de uma sociedade injusta e desigual. Quem se cala diante das injustiças é cúmplice delas. Assim como diz Martin Luther, “Quem aceita o mal sem protestar, coopera com ele”. O papa Francisco tem se preocupado muito nas questões dos pobres, porém a Igreja não avançou muito com as minorias nas questões sociais e raciais. A Igreja não depende só do papa, mas de cada um de nós sujeitos conscientes da sua história, seja para quem tem religião ou não, mas todos nós podemos pensar num mundo melhor. Os negros não são culpados quando falam em racismo, não são eles que inventaram o termo raça. O mito da democracia racial se tornou uma realidade que deve ser desconstruída. Enfim, a valorização da singularidade é elemento fundamental para pensar numa política de inclusão no nosso país.

* Jacques Kwangala Mboma, imc, é missionário em Engenheiro Pedreira, RJ.

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