CIMI: “Rumo aos 50 anos: história e resistência em defesa da causa indígena”

Neste ano, a XXIV Assembleia Geral do Cimi ocorre em formato virtual em razão da pandemia da Covid-19. Foto: Reprodução

XXIV Assembleia Geral do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) busca dar continuidade à sua missão: apoiar a luta dos povos indígenas

Por Assessoria de Comunicação do CIMI *

Entre os dias 11 e 14 de outubro, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) realiza a XXIV Assembleia Geral do Cimi. Com o tema “Rumo aos 50 anos” e o lema “História e Resistência em Defesa da Causa Indígena”, o objetivo do Cimi é dar continuidade à sua missão: apoiar a luta dos povos indígenas. No decorrer dos quatro dias de trabalho, além dos debates, trocas de experiências e deliberação, será dado o referendo dos novos coordenadores regionais.

Na manhã da última segunda-feira (11), o evento iniciou com o painel “Rumo aos 50 anos: memória e projeção”, que trouxe falas do teólogo Paulo Suess; do indigenista, pesquisador e um dos fundadores do Cimi e da Operação Anchieta (Opan), Egydio Schwade, da pedagoga e linguista do Cimi Regional Mato Grosso, Eunice Dias de Paula; e da integrante do Cimi Regional Nordeste, Daniela Abreu.

Em razão da pandemia da Covid-19, os encontros deste ano ocorrem, pela primeira vez, em formato virtual. Durante as atividades propostas para a Assembleia – construída de forma conjunta pelo Coletivo Nacional de Formação – missionários, missionárias, lideranças indígenas, representantes da igreja Católica, organizações aliadas e apoiadores, além de assessores do Cimi de todas as regiões do país, puderam participar dos debates, místicas e espiritualidade.

“Em razão da pandemia da Covid-19, os encontros deste ano ocorrem, pela primeira vez, em formato virtual”

Na foto, encontro da XXIII Assembleia Geral do Cimi, em 2019. Em razão da pandemia, os encontros são realizados, neste ano, em formato virtual. Foto: Renato Santana

Na abertura do evento, Antônio Eduardo Cerqueira , Secretário-Executivo do Conselho Indigenista Missionário, relembrou alguns trechos pontuais do Plano de Pastoral do Cimi sobre a dinâmica de esperança na atuação junto aos povos indígenas, que farão emergir um mundo novo para todos, por meio de luta e resistência. “A partir da fé, com seus desdobramentos na proximidade aos Povos Indígenas e na universalidade de sua causa, os missionários e as missionárias sabem que os índios devem crescer e eles diminuir. Por isso, o Cimi incentiva, tanto no campo político quanto no campo religioso, o protagonismo missionário e uma fé adulta, como sujeitos históricos na sociedade”, frisou.

Iniciando as explanações do painel “Rumo aos 50 anos: memória e projeção”, Egydio Schwade, filósofo, teólogo, indigenista e ativista social que, desde 1963, atua em favor dos povos, falou sobre algumas de suas vivências e sobre o histórico de atuação missionária, principalmente com os Jesuítas, além dos precedentes da criação do Cimi.

“Olhem as vossas obras como se tivessem que reconstruí-las pelos seus fundamentos”

Da esquerda para a direita: dom Roque Paloschi, presidente do Cimi, Irmã Lúcia Gianesi, vice-presidente, e Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira, secretário-executivo do Cimi. Crédito da foto: Tiago Miotto/Cimi

Schwade destacou uma das frases atemporais que o marcou profundamente, modificando seu modo de pensar e viver. “No início dos anos 50, num documento da Ordem Geral dos Jesuítas – que descrevia a dramática situação das populações oprimidas do mundo inteiro – havia uma frase que para mim repercute muito até os dias de hoje: ‘olhem as vossas obras como se tivessem que reconstruí-las pelos seus fundamentos’”, destacou o indigenista. Para ele, naquela época, era preciso criar um instrumento na Igreja que pudesse compreender e fortalecer os modos de vida e identidades dos povos tradicionais.

O filósofo conta, ainda, que o Cimi surgiu com a proposta de pôr em prática as orientações do Concílio Vaticano II, em relação a um papel mais participativo para a fé na sociedade, com atenção para os problemas sociais e econômicos. Ele pontuou que um dos entraves principais eram os próprios superiores das províncias e das missões religiosas, que investiam tudo em obras já estruturadas. Para ele, muitos sentiam que deveriam enfrentar a situação com uma nova visão da chamada “obediência religiosa”, mas foi o dominicano Frei Gil Gomes Leitão, missionário junto aos Suruí do Pará, que apresentou uma inesquecível lição sobre a questão: “Obediência, sim, mas obediência criativa!”.

Segundo Schwade, um dos documentos do Concílio Vaticano II dirigido aos missionários, onde a igreja se colocava como “A Luz dos Povos”, dizia: “busquem os missionários colher as sementes do verbo ocultas nos povos”, lembrou. “Nessa época, ninguém queria ser índio”, pontuou o indigenista ao citar as inúmeras histórias de perda de protagonismo que presenciou. “Iam para Cuiabá esconder sua identidade de índio”, tamanho era os ataques e genocídios indígenas e a explícita ação do Estado para integrá-los.

“Muitos sentiam que deveriam enfrentar a situação com uma nova visão da chamada “obediência religiosa”, mas foi o dominicano Frei Gil Gomes Leitão, que apresentou uma inesquecível lição sobre a questão”

No encontro de 50 anos da Operação Amazônia Nativa (Opan), Thomaz senta-se ao lado de Egydio Schwade, ao microfone. Foto por Egon Heck
Egydio Schwade – ao microfone – no encontro de 50 anos da Operação Amazônia Nativa (Opan). Foto: Egon Heck
Respeito: base da educação indigenista

A pedagoga e linguista do Cimi Regional Mato Grosso, Eunice Dias de Paula, referência na questão da educação escolar indígena pela experiência junto aos Sapirapé; expôs informações sobre uma pauta muito importante na caminhada do Cimi desde os primórdios: a educação.

Segundo a pedagoga, no princípio, quando os questionamentos sobre os moldes da educação ganharam forças nas assembleias indígenas, o Cimi já repensava o ensino, a exemplo das Irmãzinhas de Jesus, missionárias que não seguiam o modelo tradicional da época. “O trabalho delas era de convivência, da busca por conhecer o povo. O respeito estava na base do trabalho. Muitos indígenas queriam aprender justamente para lutar pela terra e elas ajudaram na construção de experiências diversificadas de educação. As Irmãzinhas de Jesus têm uma importância muito grande na postura que o Cimi assumiu de respeito, sem imposições e catequeses, que eram resquícios da colonização. Logo, novas escolas foram surgindo, onde as línguas indígenas e a cultura daquele povo estavam no cerne dos programas educativos”, explicou.

“Trabalhos [missionários] que repercutiram na legislação, quando o constituinte de 1988 consagra o direito indígena”

I Fórum Nacional de Educação Superior Indígena e Quilombola, outubro de 2021. Foto: Regis Guajajara/ Mídia Índia

Essa postura de respeito ao saber do outro esteve presente nos inúmeros trabalhos do Cimi nesses quase 50 anos, destaca Eunice Dias. Ela lembra que foram feitos pela entidade vários encontros formativos – para missionários e indígenas – e dois encontros nacionais sobre a educação tradicional, além da publicação de vastos materiais. “Trabalhos que repercutiram na legislação, quando a  constituinte de 1988 consagra o direito indígena, o respeito as línguas, culturas e tradições”, exemplifica.

Ao fazer uma projeção para o futuro, a missionária destaca o Fórum Nacional de Educação Escolar Indígena (FNEEI) como modelo de crescimento do movimento indígena que, segundo ela, é fruto do trabalho de quase 50 anos do Cimi, somado ao protagonismo assumido pelos indígenas.

A pastoral indigenista libertadora e o papel profético do Cimi

Paulo Suess, Assessor teológico do Cimi, trouxe reflexões importantes sobre o papel da entidade no processo de fortalecimento da defesa dos povos indígenas e também na ruptura nas práticas missionárias coloniais. Ele conta que foi no oitavo ano da ditadura militar, no período mais repressivo da história brasileira, que o Cimi começou a se estruturar, a partir do que ele chama de atos proféticos.

“O Cimi é um filho do Vaticano II e transformou a colonialidade das práticas missionárias em pastoral indigenista libertadora. Esse foi o primeiro ato profético. O segundo, ocorreu durante a primeira Assembleia Geral do Cimi, quando a entidade definiu profeticamente seis prioridades que até hoje são válidas, trazendo uma conscientização missionária para a política indigenista. Contra as ondas agitadas da época”, destacou.

“O Cimi é um filho do Vaticano II e transformou a colonialidade das práticas missionárias em pastoral indigenista libertadora”

Dom Erwin Kräutler e Paulo Suess durante discussão sobre o Sínodo da Amazônia, em outubro de 2019. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Na oportunidade, o teólogo lembrou dos tempos de negação da relevância da pastoral e do trabalho indigenista do Cimi e, ainda, da negação da existência dos índios e do protagonismo dos povos tradicionais. “Quando o Cimi abriu as janelas da pastoral missionária colonizadora, nem todos os setores eclesiais ficaram encantados, pois havia uma questão de fundo: a pastoral indigenista deveria preparar a integração dos índios na comunidade nacional – como dizia o programa oficial – para novas forma de colonialidade, ou seja, prepará-los para o mercado. Verdades da época que nos incomodaram. Eram duas tarefas para o Cimi: atuar num contexto mais amplo de fortalecer a defesa dos povos indígenas e converter a própria igreja”, pontuou.

Paulo Suess frisou que, para o fortalecimento em prol da descolonialidade, era preciso a ampliação dos trabalhos da pastoral, mas que defender a terra, a cultura e a autodeterminação significava “construir uma casa sobre a areia”. Para ele, o bem viver social e ambiental exige a ruptura do paradigma hegemônico e de seus eixos de crescimento: desmatamento e aceleração. “Nessa perspectiva, o Cimi fez alianças com pastorais indígenas e indigenistas de países Latino-Americanos e com os setores sociais que acreditavam num futuro específico dos povos indígenas e que atuavam num horizonte antissistêmico, empenhados na construção de um outro mundo possível”, ressaltou.

O Assessor teológico do Cimi acredita que esse é o momento de repensar a história e o futuro, aprender com os indígenas e “reler a história na chave da memória subversiva de Jesus”, pois “a esperança provavelmente nunca será um monumento, será só um momento e um fragmento”, concluiu.

“Atuavam num horizonte antissistêmico, empenhados na construção de um outro mundo possível”

Lançamento do Manifesto Reflorestarmentes. Foto: Webert da Cruz /Coletivo Retratação
O ressurgimento da identidade étnica

A integrante do Cimi Regional Nordeste, Daniela Abreu, explanou sobre a importância da presença missionária no processo de descolonização e sobre o extermínio indígena que invisibilizou as lutas dos povos originários por muito tempo. “Aqui no Nordeste, o Cimi faz 43 anos de presença missionária, de luta, de esperançar junto aos povos indígenas. E, nesses 43 anos de luta, foram muitas alegrias, dores e muito aprendizado junto às comunidades. Acompanhei, enquanto criança, a atuação de vivência junto aos povos e de reconhecimento dessa identidade étnica que estava invisibilizada em razão desses processos de apagamento dos povos indígenas no Nordeste e de suas lutas”, relatou.

Para Daniela Abreu, as estratégias de resistência dos povos, que antes aconteciam discretamente e em segredo, ressurgiu com a retomada da identidade das comunidades e com a ajuda dos missionários que faziam ecoar as lutas dos povos tradicionais.

“Ao toque do maracá, para não serem ouvidos, tocavam uma caixa de fósforo, uma estratégia de resistência”

II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, setembro de 2021. Foto: Verônica Holanda/Cimi

“Embora muitos povos tenham sido exterminados, alguns grupos resistiram, escondidos. Muitos vivendo integrados à sociedade, mas resistiam e mantinham seus rituais. Lembro de um grupo que, ao toque do maracá, para não serem ouvidos, tocavam uma caixa de fósforo, uma estratégia de resistência desses povos para manterem presente sua identidade”, destacou.

A integrante do Cimi Regional Nordeste ressaltou ainda um episódio ocorrido em 2003, no Encontro dos Povos Ressurgidos, quando a Cacica Maninha, do povo Xukuru Kariri, se contrapôs à expressão “ressurgidos”. “Os povos não são ressurgidos, não são emergentes, eles são resistentes, porque sempre estiveram ali presentes, embora invisibilizados e silenciados, mas sempre estiveram lutando”, concluiu.

Fonte: cimi.org.br

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